segunda-feira, 12 de junho de 2017

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Menino pio. Largado, deixado, se esgueirando lânguido pelas ruas da cidade. Que cidade? Desavisado sobre pronome possessivo, adjetivo, substantivo, provérbio. Nascido com a palavra pra dentro, boca é para engolir. O que não era de todo mal já que sua cabeça sem peso se borboletava por aí dando nome pras coisas. Ele ficava olhando atentamente até extrair dali um som e, com carinho, saía palavra. A fronte dos outros, como ele, não lhe dizia respeito, aliás, não lhe diziam nada. Preferia as coisas. Esses seres cheios de olhos e dentes lhe causavam medo e, colocado à margem, permanecia no limiar do desconhecido, do sumido, do indiferente.

Um dia acordou com uma sensação estranha. Sentia o ar palpável, os cheiros vinham como algodão. Ocupando espaço e afofando a pele como se afofa travesseiro antes de dormir quentinho. O espaço era romã em seu vermelho saudoso de andorinha voltando pra casa. Tudo era romã mordida, fresca, como vida que escorre. Tudo era costurável à pele viva, nada tinha pontas, a vida do círculo. Quando se mexia e o cobertor surrado deixava entrever seu corpo, era todo o vento – inteiro – a lhe arrepiar os pêlos. Mas não sabia ao certo a cor do desejo: se lhe cobria o corpo ou se continuava ali, assim, até a pele ficar toda purpurina e confete. Era uma manhã de primavera. E ele então lhe deu um nome.

Não entendia razão de ser. Filosofia é para quem pensa além da testa e tudo nele ressoava às vísceras. Acreditava ser oco, até que viu pintar a pele escura um amargo líquido passional; escorria com a pressa de um córrego que funde sua identidade no mar. Não resistiu e lhe botou o dedo até sentir o arder daquela sua vida de tropeços. Cair dá nisso. O chão tolhe a queda e pune os obstinados. Entendia que a terra era toda ser, todos lhe pisavam o ânimo, mas humilde tinha seus caprichos. Almejava ser superfície.

Era acostumado a fome, tanto quanto era a força da sua primeira palavra. Ela era som fechado, de quem faz vazio com a boca e ora. De sufixo que une os lábios pra calar o desespero de outrora e selar em segredo a língua morta. O alimento era da ordem do inesperado e quando vinha à boca não tinha sabor de assado, mas de urgente. Aprendeu a ver graça nisso e, quando comia, seu estômago era todo espera. Mordia devagar para que também o ato fosse iguaria. A saliva um dia lhe acordou de um sono sonso e ele viu aos pés uma trouxinha de chita cheirosa. Desatracou o nó e levantou âncora. Submergiu daqueles trapos um bolo de pele suave e bonita brancura. Feito uma noiva. Levantou seu peito de proa e mordiscou-lhe a beirada. Comeu feito uma procissão, até lamber o cais.

Tinha sua pequena rotina e, em segredo, pequenos prazeres. Quando o dia começava a ruborizar, tingindo-se de carmim, seus olhos eram duas esferas negras que podiam explodir o mundo. Sentava-se à sombra e ficava fitando as folhas caindo, desavisadas de seu bote. Quando elas se desprendiam de sua pátria a convite de uma tão sonhada valsa, ele as colhia no berço de suas mãos pequenas, uma por uma. Elas eram seu pequeno tesouro e a cada uma botava um nome, tal alcunha valia pelos desenhos e cores herdados pelo tempo.

(uma coisa que rasgava seu peito de menino era a revolução ininterrupta dos ponteiros que insistiam em fazer-se início. Supunha ser o tempo mais que isso, sabia de um pulsar que tamborilava nos porões do esquecimento, de uma alma sem norte que se transverte dia-a-dia. Isso botava sulcos no seu rosto e sentia-se órfão uma vez mais. Para o tempo inventou palavra grande – dessas que, ao falar, assalta em nós um lamento de útero seco)

..Quando então tinha um punhado de folhas na mão, amarrava-as livres num barbante catado por aí. Fazia um chocalho mudo de folhas e chicoteava-as na cara do vento. Eram saltos de festim. O barulho era de água corrente beijando pedrinhas cheias de alvoroço. O vento era bom e amaciava seus cabelos dizendo: “não te apanhes com o tempo, culpa mesmo é da vida”. Ele se sorria, pois seu buquê de pipas ganhava algo que a queda e a podridão sequer lhes dariam.

Do amor não tinha palavra nem sisudez, era ainda murmúrio, coisa amorfa. Desertado no seio murcho de quem se fez em lágrimas, sua fauna tinha como origem uma lareira que se queimou em “não”. Lembrança tinha seus rastros, insinuava-se na memória uma cosquinha de caracol enquanto sorvia o pomo sabor de jambo e momo. Mãe era palavra difícil, longe de ser tríade simétrica. Incompleta, assim como o afago abortado desde cedo. Ele não guardava mágoa, mas tampouco construiu afeto, formando então palavra dúbia e repetitiva. Reiterava sua condição de feto mal formado e i(nato) na sentença curta rachada por som de garganta arranhada, esfolada em seu doce vagido. Seus enleios eram acabamento da moleira ainda aberta e lhe ninavam o coração queixoso.

Num desses dias preguiçosos, o som lépido de uma alegria inadiável urgiu em seus ouvidos. Olhou curioso para aquele bicho serelepe que não teve cerimônia nenhuma para lhe dirigir a palavra. Ele era pura alegria e dor, só num cão ambos podem coexistir sem conflito. Na gente esses sentimentos são prenhes, fazem nascer angústia e afetação. Seu sofrimento tinha cor vermelha e pus e sua euforia bafo e baba. Acolheu a morte em seus braços e adormeceu sem nem ainda sabê-la. Acordou encrespado e, quando viu, não soube dar nome algum. A morte era um terrível vazio totalmente presente e pungente naquele corpo frio. Como a morte entra na gente? Nunca antes uma palavra tinha lhe sujeitado tanto por existir. Doía: a morte entrando. Doía: a palavra saindo. O corpo é meramente prosaico, só se mantém com os olhos abertos. Pensou se havia morrido também, pois seu corpo se liquefazia acolhendo aquela vida lúgubre e inteira. Nunca houve um espaço sequer tão preenchido quanto ali que se jazia. A morte já tinha lhe visto e jamais havia de lhe largar, a menos que tivesse um nome. A morte é uma censura aos vivos. Ela planeja seu próprio esquecimento, mas arranha com descaso a mocidade da vida para escancarar-lhe sua finitude. A vida do cão só se fez viva quando a morte concluiu as arestas. Por que é que a vida revela sua total falta de sentido quando enfim está sepulta? Chorou. Morte é palavra branca, surda e totalizante.

A noite tinha presença enternecedora para si e para tudo que pungia em seu entorno. Ela é dúbia, no ruído e no afago. O desejo é taciturno. Lascívia exposta no rangido das esquinas. Noite sabe dos seus feitiços e mandingas, e o menino passou a sabê-los por sob os pêlos. A luz fraca entreviu o dorso torpe intumescido pela ponta dos dedos. O corpo é engraçado, ele estremece. O movimento cadenciado das mãos arrebatava-lhe sorrisos veleidosos que rasgavam todo e qualquer decoro. Muitos sons saíam de si, mas descobriu que o ápice do seu júbilo era mudo e exorcizado. Ficou entorpecido por quanto tempo, não sei; mas sua mente em devaneio foi aos poucos pousando o queixo em palavra líquida. Murmurada e compassada, feito água cúmula empurrando fruta seca canaleta adentro.

Era um dia chuvoso e ele pôs-se em vírgula. Envergado sobre si mesmo aproximou o ouvido do peito para escutar o burburinho lá de dentro. Seu princípio era o verbo e seu coração pulsava palavra medular, firme e íntima. Os extremos mais complexos e incompreendidos ocupando o mesmo instante no espaço. Cabeça e pés, seu firmamento e vértice. Seu próprio ouroboros transformando a dúvida em eterna sentença. O que há nesse pequeno intervalo de silêncio? Intimidade e auto fecundação. E se te perguntassem: queres nascer de novo menino à toa? E ser ampulheta nessa mesma veste? Sabia não. Mas no âmago dessa quimera algo lhe tomou de assalto: um nome. Nascera, como um ponto de torque naquele incansável rodear, o seu nome.

Inventara de novo a alegria. Um balão crescia dentro do seu peito, tamanho o alvoroço! Podia agora mandar bordar seu nome na camisa, se quisesse. Si mesmo no traje, no trejeito e no trajeto. Devidamente intitulado, hasteou todos os seus 1 metro e pouco e pôs-se formoso sob aquele salseiro. Sentia a chuva molhar pela primeira vez seu nome e aliviar o preço daquela pequena alçada. Mas não tinha nada a perder, nunca teve, não é? Então rompeu seu século de silêncio e inaugurou sua voz, que lhe saiu como um turbilhão. Era linda, feito um bordado. Exibiu seu balançar galgando rua afora. Gritava e sorria. Reinventava seus lábios emugrecidos. Falava com todos que lhe cruzavam o caminho, cravava seu olhar esgazeado e entusiasmado. A cidade que até ali o reprimia era passarela de sua intimidade. Ter um nome é ter morada dentro de si. Cada fio, fibra e feição carregam o peso de ser uma plena comunhão de desalinhos.

Foi nessa hora que um moço grande tocou-lhe os ombros, e foi conduzido ao abraço de uma prisão de pano. Todos olhavam com cabeça de pêndulo, cada um fortificado em sua decadente nomeação.

Agora tinha nome, ficha e diagnóstico.

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. Menino pio. Largado, deixado, se esgueirando lânguido pelas ruas da cidade. Que cidade? Desavisado sobre pronome possessivo, adjetiv...