Menino pio. Largado, deixado, se
esgueirando lânguido pelas ruas da cidade. Que cidade? Desavisado sobre pronome
possessivo, adjetivo, substantivo, provérbio. Nascido com a palavra pra dentro,
boca é para engolir. O que não era de todo mal já que sua cabeça sem peso se
borboletava por aí dando nome pras coisas. Ele ficava olhando atentamente até
extrair dali um som e, com carinho, saía palavra. A fronte dos outros, como
ele, não lhe dizia respeito, aliás, não lhe diziam nada. Preferia as coisas.
Esses seres cheios de olhos e dentes lhe causavam medo e, colocado à margem,
permanecia no limiar do desconhecido, do sumido, do indiferente.
Um dia acordou com uma sensação
estranha. Sentia o ar palpável, os cheiros vinham como algodão. Ocupando espaço
e afofando a pele como se afofa travesseiro antes de dormir quentinho. O espaço
era romã em seu vermelho saudoso de andorinha voltando pra casa. Tudo era romã
mordida, fresca, como vida que escorre. Tudo era costurável à pele viva, nada
tinha pontas, a vida do círculo. Quando se mexia e o cobertor surrado deixava
entrever seu corpo, era todo o vento – inteiro – a lhe arrepiar os pêlos. Mas
não sabia ao certo a cor do desejo: se lhe cobria o corpo ou se continuava ali,
assim, até a pele ficar toda purpurina e confete. Era uma manhã de primavera. E
ele então lhe deu um nome.
Não entendia razão de ser. Filosofia é
para quem pensa além da testa e tudo nele ressoava às vísceras. Acreditava ser
oco, até que viu pintar a pele escura um amargo líquido passional; escorria com
a pressa de um córrego que funde sua identidade no mar. Não resistiu e lhe
botou o dedo até sentir o arder daquela sua vida de tropeços. Cair dá nisso. O
chão tolhe a queda e pune os obstinados. Entendia que a terra era toda ser,
todos lhe pisavam o ânimo, mas humilde tinha seus caprichos. Almejava ser
superfície.
Era acostumado a fome, tanto quanto
era a força da sua primeira palavra. Ela era som fechado, de quem faz vazio com
a boca e ora. De sufixo que une os lábios pra calar o desespero de outrora e selar
em segredo a língua morta. O alimento era da ordem do inesperado e quando vinha
à boca não tinha sabor de assado, mas de urgente. Aprendeu a ver graça nisso e,
quando comia, seu estômago era todo espera. Mordia devagar para que também o
ato fosse iguaria. A saliva um dia lhe acordou de um sono sonso e ele viu aos
pés uma trouxinha de chita cheirosa. Desatracou o nó e levantou âncora.
Submergiu daqueles trapos um bolo de pele suave e bonita brancura. Feito uma
noiva. Levantou seu peito de proa e mordiscou-lhe a beirada. Comeu feito uma
procissão, até lamber o cais.
Tinha sua pequena rotina e, em
segredo, pequenos prazeres. Quando o dia começava a ruborizar, tingindo-se de
carmim, seus olhos eram duas esferas negras que podiam explodir o mundo. Sentava-se
à sombra e ficava fitando as folhas caindo, desavisadas de seu bote. Quando
elas se desprendiam de sua pátria a convite de uma tão sonhada valsa, ele as
colhia no berço de suas mãos pequenas, uma por uma. Elas eram seu pequeno
tesouro e a cada uma botava um nome, tal alcunha valia pelos desenhos e cores
herdados pelo tempo.
(uma coisa que rasgava seu peito de
menino era a revolução ininterrupta dos ponteiros que insistiam em fazer-se
início. Supunha ser o tempo mais que isso, sabia de um pulsar que tamborilava
nos porões do esquecimento, de uma alma sem norte que se transverte dia-a-dia. Isso
botava sulcos no seu rosto e sentia-se órfão uma vez mais. Para o tempo inventou
palavra grande – dessas que, ao falar, assalta em nós um lamento de útero seco)
..Quando então tinha um punhado
de folhas na mão, amarrava-as livres num barbante catado por aí. Fazia um
chocalho mudo de folhas e chicoteava-as na cara do vento. Eram saltos de
festim. O barulho era de água corrente beijando pedrinhas cheias de alvoroço. O
vento era bom e amaciava seus cabelos dizendo: “não te apanhes com o tempo,
culpa mesmo é da vida”. Ele se sorria, pois seu buquê de pipas ganhava algo que
a queda e a podridão sequer lhes dariam.
Do amor não tinha palavra nem sisudez,
era ainda murmúrio, coisa amorfa. Desertado no seio murcho de quem se fez em
lágrimas, sua fauna tinha como origem uma lareira que se queimou em “não”.
Lembrança tinha seus rastros, insinuava-se na memória uma cosquinha de caracol enquanto
sorvia o pomo sabor de jambo e momo. Mãe era palavra difícil, longe de ser
tríade simétrica. Incompleta, assim como o afago abortado desde cedo. Ele não
guardava mágoa, mas tampouco construiu afeto, formando então palavra dúbia e
repetitiva. Reiterava sua condição de feto mal formado e i(nato) na sentença
curta rachada por som de garganta arranhada, esfolada em seu doce vagido. Seus
enleios eram acabamento da moleira ainda aberta e lhe ninavam o coração
queixoso.
Num desses dias preguiçosos, o som lépido de uma alegria
inadiável urgiu em seus ouvidos. Olhou curioso para
aquele bicho serelepe que não teve cerimônia nenhuma para lhe dirigir a
palavra. Ele era pura alegria e dor, só num cão ambos podem coexistir sem
conflito. Na gente esses sentimentos são prenhes, fazem nascer angústia e afetação.
Seu sofrimento tinha cor vermelha e pus e sua euforia bafo e baba. Acolheu a
morte em seus braços e adormeceu sem nem ainda sabê-la. Acordou encrespado e, quando
viu, não soube dar nome algum. A morte era um terrível vazio totalmente
presente e pungente naquele corpo frio. Como a morte entra na gente? Nunca
antes uma palavra tinha lhe sujeitado tanto por existir. Doía: a morte
entrando. Doía: a palavra saindo. O corpo é meramente prosaico, só se mantém
com os olhos abertos. Pensou se havia morrido também, pois seu corpo se
liquefazia acolhendo aquela vida lúgubre e inteira. Nunca houve um espaço
sequer tão preenchido quanto ali que se jazia. A morte já tinha lhe visto e
jamais havia de lhe largar, a menos que tivesse um nome. A morte é uma censura aos
vivos. Ela planeja seu próprio esquecimento, mas arranha com descaso a mocidade
da vida para escancarar-lhe sua finitude. A vida do cão só se fez viva quando a
morte concluiu as arestas. Por que é que a vida revela sua total falta de
sentido quando enfim está sepulta? Chorou. Morte é palavra branca, surda e
totalizante.
A noite tinha presença enternecedora
para si e para tudo que pungia em seu entorno. Ela é dúbia, no ruído e no
afago. O desejo é taciturno. Lascívia exposta no rangido das esquinas. Noite
sabe dos seus feitiços e mandingas, e o menino passou a sabê-los por sob os
pêlos. A luz fraca entreviu o dorso torpe intumescido pela ponta dos dedos. O
corpo é engraçado, ele estremece. O movimento cadenciado das mãos
arrebatava-lhe sorrisos veleidosos que rasgavam todo e qualquer decoro. Muitos
sons saíam de si, mas descobriu que o ápice do seu júbilo era mudo e exorcizado.
Ficou entorpecido por quanto tempo, não sei; mas sua mente em devaneio foi aos
poucos pousando o queixo em palavra líquida. Murmurada e compassada, feito água
cúmula empurrando fruta seca canaleta adentro.
Era um dia chuvoso e ele pôs-se em vírgula.
Envergado sobre si mesmo aproximou o ouvido do peito para escutar o burburinho
lá de dentro. Seu princípio era o verbo e seu coração pulsava palavra medular,
firme e íntima. Os extremos mais complexos e incompreendidos ocupando o mesmo
instante no espaço. Cabeça e pés, seu firmamento e vértice. Seu próprio
ouroboros transformando a dúvida em eterna sentença. O que há nesse pequeno
intervalo de silêncio? Intimidade e auto fecundação. E se te perguntassem:
queres nascer de novo menino à toa? E ser ampulheta nessa mesma veste? Sabia
não. Mas no âmago dessa quimera algo lhe tomou de assalto: um nome. Nascera,
como um ponto de torque naquele incansável rodear, o seu nome.
Inventara de novo a alegria. Um balão
crescia dentro do seu peito, tamanho o alvoroço! Podia agora mandar bordar seu
nome na camisa, se quisesse. Si mesmo no traje, no trejeito e no trajeto. Devidamente
intitulado, hasteou todos os seus 1 metro e pouco e pôs-se formoso sob aquele
salseiro. Sentia a chuva molhar pela primeira vez seu nome e aliviar o preço
daquela pequena alçada. Mas não tinha nada a perder, nunca teve, não é? Então
rompeu seu século de silêncio e inaugurou sua voz, que lhe saiu como um
turbilhão. Era linda, feito um bordado. Exibiu seu balançar galgando rua afora.
Gritava e sorria. Reinventava seus lábios emugrecidos. Falava com todos que lhe
cruzavam o caminho, cravava seu olhar esgazeado e entusiasmado. A cidade que
até ali o reprimia era passarela de sua intimidade. Ter um nome é ter morada dentro
de si. Cada fio, fibra e feição carregam o peso de ser uma plena comunhão de
desalinhos.
Foi nessa hora que um moço grande
tocou-lhe os ombros, e foi conduzido ao abraço de uma prisão de pano. Todos olhavam
com cabeça de pêndulo, cada um fortificado em sua decadente nomeação.